Voltando ao episódio do comandante Renato e sua tropa. Ele está completamente envolvido na tarefa de incendiar a GMC da UNITA, apreendida na zona do controle Sul. Estamos num Sábado à tarde, sentados no muro do prédio do MCH. Repentinamente nos deparamos com um grupo de policias anti-motim a escoltar uma carrinha pertencente a UNITA. Quando chegam a um terreno ao lado das bombas de gasolina do Kalunga, em plena cidade de Benguela, eles botam fogo no veículo e este em pouco tempo vira um monte de ferro retorcido e carbonizado. Este episódio aumenta exponencialmente o ambiente de tensão que já se vive na cidade, ao longo da última semana.
(Texto dedicado ao Comandante Oliveira Santos)
Muito próximos daquele local, estamos nós, os membros do grupo de defesa civil do Kasseque. Permanecemos sentados no muro do prédio do MCH, a observar, incrédulos, o que se está a passar no descampado vizinho. Por enquanto, a ordem que temos é de não nos deixarmos ver empunhando armas pelo pessoal da UNAVEM, que vai passando constantemente nos Toyota de cor branca e insígnias pretas, de um lado para o outro, na tentativa de evitar o confronto armado que já se adivinha entre o governo e a UNITA.
Enquanto a GMC é consumida inexoravelmente pelas chamas, o comandante Renato vocifera um rol de palavrões de origem escatológica, nos quais apenas conseguimos distinguir, repetidamente a expressão: ” agora, se quiserem porrada podem vir, seus filhos da p..ta”! Está mais que claro, que o recado tem como destinatários os homens da UNITA, os donos da GMC, que nesse mesmo instante, deveriam estar igualmente a retribuir-lhe os pomposos elogios.
O comandante Renato era conhecido como um homem de caráter impulsivo e de tendência assaz conflituosa. Era um polícia à sua maneira. Eu o conhecia bem por causa da nossa paixão comum por motos. Em diferentes ocasiões, tínhamos cruzado a rolar pela cidade. Um dia, ele apanhou a minha Honda mal estacionada e resolveu aplicar-me a multa correspondente, ao mesmo tempo que murmurava entre dentes: -“Tu és o tal jornalista”. Eu nada respondi. A sua área de trabalho na polícia, era a de regulação de trânsito. Rapidamente, ele ficou conhecido na cidade por aplicar multas a torto e a direito, a quem quer que fosse. Ele tinha sido trazido recentemente de Luanda pelo comandante provincial Oliveira Santos, para fazer parte da sua equipa de trabalho. Fruto de constante desejo de protagonismo, não tardou a chegar o momento de coleccionar uma legião de pessoas que antipatizavam com as suas acções. Tudo o que fazia era parte do seu plano para meter “Benguela na linha”, segundo dizia.
Mas os azares acontecem na vida de cada um, quase sempre sem avisar. Certa vez, foi o próprio Renato a espatifar-se com uma moto nova da polícia de trânsito, no cruzamento da Joframa. Na cidade, todos sabem que esse cruzamento é um dos principais pontos quanto ao volume de trafego e também um dos mais perigosos, por ausência de sinalização luminosa. Ficou claro que foi ele quem transgrediu as regras de trânsito e a noticia correu célere na boca do povo. A partir daquele dia, a sua reputação baixou bastante, mas ele continuou aprontando das suas, de forma quase obsessiva, sempre debaixo de ruidosas celeumas.
Na altura em que iniciaram os problemas militares entre o governo e a UNITA, imediatamente vimos o comandante do trânsito a aparecer no terreno, trajado com o uniforme operacional dos famosos anti-motim. Agora, estava xlaramente assumindo a postura bélica de um chefe militar. Foi nessa condição, que mais tarde sucederia o seu desenlace mortal.
A vida do comandante Renato terminaria de maneira bastante trágica, em Benguela, dois meses após o incêndio da GMC. Os da UNITA o tinham permanentemente debaixo de olho, desde uma pesada discussão que tinha ocorrido nas imediações do Hotel M´Ombaka, envolvendo os chefes da escolta do Dr. Savimbi, durante as andanças da campanha eleitoral. A partir daquele dia, sem que ele desconfiasse, o Renato tinha uma “fatwa” a pairar sobre a sua cabeça. Tudo seria apenas uma questão de tempo.
Eles tiveram tempo para estudar minuciosamente os seus métodos de actuação, entre os quais o de ser o primeiro a chegar aos locais onde surgem escaramuças entre o pessoal do MPLA e o da UNITA. Na cidade, já se sabe que os comandos do Galo Negro e da Brinde estão no seu encalço desde a citada briga com os generais da Segurança Presidencial da UNITA. Tudo acontecera numa reunião operativa com a cúpula dessa segurança, quando o comandante Renato declarou que não aceitava que a tropa da protecção do Dr. Savimbi fosse espalhada pela cidade. A sua decisão estava baseada no pressuposto de que o asseguramento nas actividades públicas dos candidatos, durante a campanha eleitoral, deveria ser da responsabilidade da Policia Nacional, como rezavam os acordos de Paz.
Como sempre, o comandante Renato permaneceu irredutível na sua posição. Isso irritou sobremaneira os comandantes da UNITA. Posteriormente, num contacto telefônico, um deles ameaçaria novamente:
– “Cuidado Renato, não brinques conosco, vamos te tomar medidas serias”. Entretanto, como as comunicações telefônicas da rede fixa estavam a ser monitoradas pelos órgãos da segurança do governo, a gravação dessa áspera conversa foi emitida depois na Rádio Benguela como uma ameaça à polícia. Assim, estava ditada a sentença do comandante Renato.
Num dado momento em que os incidentes estavam a acontecer quase diariamente na cidade, alguém concluiu ter chegado o momento do prometido ajuste de contas com o Renato. No princípio da noite, elementos desconhecidos montam um cenário de incidente com disparos de tiros e confusão. Assim, o atraem ardilosamente para uma emboscada, por detrás do cine Benguela.
Como sempre, Renato está baseado no Posto de Comando, sempre pronto a intervir, quando o assunto envolve desordem política e tiros. A bordo de um patrulheiro azul, ele chega imediatamente ao local, a fim de averiguar o que se está a passar. Mal aborda os elementos armados que encontra, estes o alvejam à queima roupa, com uma rajada de PKM. Um dos seus ajudantes, de nome Leal, escapa milagrosamente dos disparos e consegue fugir para o centro da cidade.
Renato esvai-se em sangue e os seus algozes desaparecem rapidamente na escuridão. O assassinato de Renato ocorre em janeiro de 1993. Trata-se do caso que dá origem a eclosão da segunda guerra entre o governo e a UNITA, na cidade de Benguela. Nesse dia, pelos rostos de muitos dos defensores da cidade rolam lágrimas de penosa gratidão, pelo sacrifício supremo protagonizado pelo comandante Renato. Honrar a sua memória significava voltar a combater até a expulsão dos responsáveis pela sua morte. A cidade não poderia continuar cativa.