Nascido aos 9 de Setembro de 1953, no bairro Cotel, na cidade de Benguela, Pedro Garcia, o “eterno” Capitão dos Palancas Negras, iniciou a carreira desportiva nas escolas de futebol do Nacional de Benguela, na altura Portugal de Benguela.Em entrevista ao Jornal de Angola, Pedro Garcia disse que é com muito orgulho que acompanhou a evolução dos Palancas Negras, “uma demonstração de que o futebol angolano está a evoluir”
Termina hoje o CAN na Côte d’Ivoire. Quais são as ilações que tirou da participação dos Palancas Negras no evento?
Acompanhei com muita atenção a evolução do Campeonato Africano das Nações, precisamente porque além de ser desportista e gostar do desporto, o nosso país esteve presente. Sou obrigado a tecer algumas considerações sobre isso. Repito, gosto do desporto em geral e do futebol em particular, porque foi nestas lides onde nasci e cresci.Devo dizer que foi uma participação positiva, porque na fase regular empatamos com a Argélia, uma das selecções que era suposto vencer o grupo D. Jogamos com a Mauritânia, o Burkina Faso e terminamos em primeiro lugar no grupo. Foi positivo. Depois do sucesso, chegamos aos oitavos-de-final, onde eliminamos a Namíbia. Foi uma participação auspiciosa.
Gostou do grupo D, onde figurou a Selecção Nacional?
Antes, deixa dizer que o jogo mais difícil, depois da Argélia, foi contra o Burkina Faso. O que eu vi no jogo da Mauritânia e do Burkina Faso foram equipas poderosas, lutadoras e com elementos pulsantes, principalmente na defesa. São robustos e com força a defender. Ainda assim, lideramos o grupo, o que nos levou até aos quartos-de-final. Queríamos estar na final. Ainda assim, perder com a Nigéria, por apenas 0-1, nos quartos-de-final, podemos concluir que foi uma participação positiva. Diz-se muito que o treinador da Selecção deve fazer determinadas alterações na equipa. Eu sou apologista que quem manda na equipa é o treinador e só ele pode fazer o que quer, porque se ele está diariamente com a equipa, sabe quem está em melhores condições. Estou feliz com a participação da Selecção no CAN da Côte d’Ivoire.
Sei que é tratado como o “eterno” Capitão dos Palancas Negras. Em que ano iniciou a carreira desportiva?
Iniciei a minha carreira desportiva nas escolas de futebol do Nacional de Benguela, na altura Portugal de Benguela, orientado pelo treinador Salvador do Carmo. Seguidamente, passei a representar o Sporting de Benguela na categoria de juniores. Pela primeira vez, fui campeão distrital (actualmente provincial).Ascendi à equipa dos seniores do Portugal de Benguela em 1971. Seguidamente, isto é de 1973 a 1974, representei o Sporting Clube de Luanda, devido ao cumprimento do serviço militar no Exército português, naquele distrito (agora província). Em 1975 regressei ao Clube Portugal de Benguela, que após a proclamação da Independência Nacional passou a denominar-se Clube Nacional de Benguela.Fiz parte, em 1976, de um misto que se deslocou a Brazzaville, República Popular do Congo, para um jogo de carácter particular.
Tem na memória o ano em que foi chamado para integrar a Selecção Nacional pela primeira vez?
Em 1977 participei na primeira Selecção Provincial de Benguela, como capitão, e defrontamos a Selecção de Luanda. Durante o período de 1977 a 1980 representei o Clube Desportivo 1º de Agosto, onde me sagrei, pela primeira vez, campeão nacional.Representei pela primeira vez o país em competições africanas a nível de clubes em 1978, ao defrontar o Cannon de Yaoundé, da República Unida dos Camarões, para a Taça dos Clubes Campeões Africanos.
Parou por aí?
Não. Em 1980 regressei a Benguela, para representar o Clube Nacional na Taça dos Clubes Campeões Africanos, onde defrontamos o Union de Douala dos Camarões. A partir de 1984 passei a representar o Clube 1º de Maio de Benguela, até 1986. Como capitão da mesma equipa, sagrei-me campeão nacional de Angola em 1985. E defrontamos várias equipas africanas, como o Ashanti Kotoko, do Ghana, o Semassi Seko, do Togo, o Atlético de Malabo, da Guiné Equatorial, entre outras. No mesmo ano (1985), fui campeão da 1ª Supertaça de Angola, pelo 1º de Maio de Benguela.
Em que ano terminou a carreira desportiva oficial ao serviço do 1º de Maio de Benguela?
Finalizei a minha carreira desportiva oficial no 1º de Maio de Benguela em 1986, a partir daí prossegui apenas a actividade desportiva de recreação, fazendo parte de várias equipas, mistos e selecções, em jogos locais, nacionais e internacionais.
Tem memória dos jogos internacionais que realizou pela Selecção Nacional de Angola como capitão?
De 1977 a 1980 representei a Selecção Nacional de Futebol como capitão, tendo defrontado várias selecções, quer em jogos oficiais como particulares, tais como Zâmbia, Tunísia, Congo-Brazzaville, Congo Democrático, na altura Zaire, Camarões, São Tomé e Príncipe, Botswana, Moçambique, Cuba, Nigéria, Gabão, Ghana, Senegal, Marrocos, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Madagáscar, Zimbabwe, entre outras, totalizando 55 jogos internacionais, entre oficiais e particulares.
Algo a destacar como jogador ao serviço da Selecção Nacional?
Lembro-me do estágio que realizamos em 1977, para a Taça das Nações na Bulgária. Ainda nesse ano, defrontamos a República Popular do Congo para a Taça das Nações. Nos anos subsequentes (1979 a 1985) participei, dentre vários, no Torneio Cuba/Angola, em Havana, defrontamos a congénere do Congo Brazzaville em Luanda e posteriormente em Brazzaville, para a Taça das Nações. Participei num estágio da Selecção para os Jogos da África Central. Representei, ainda, a nossa Selecção nos Jogos da África Central, realizados em Luanda. Representei, também, a Selecção na Taça das Nações, onde defrontamos a Selecção dos Camarões. Participei no apuramento para os Jogos Olímpicos de Los Angeles, em Luanda, onde voltamos a defrontar os Camarões, além de representar a Selecção Nacional nos jogos de apuramento ao Mundial, diante da Selecção do Senegal.
Como antigo capitão da Selecção Nacional, tem algumas recordações de participações em fases finais de Campeonatos Africanos de Futebol (CAN)?
Olha, no nosso tempo, nunca participamos numa fase final do CAN, porém tivemos muitas participações em jogos de apuramento para a mesma competição, Jogos Olímpicos e outros.
Qual é a razão?
É muito fácil compreender os motivos. Nós fomos os elementos que transitaram, no futebol em Angola, da era colonial para a Independência Nacional. Portanto, nós quando começamos a fazer as competições internacionais a nível de selecções, já encontramos muitas selecções poderosas em África. Muito poderosas mesmo. Então, nós fomos ganhar a experiência que tentamos transmitir à nova geração. Acredito que essa nova geração deu prosseguimento com algumas coisas boas e outras nem tanto, e chegamos a um Mundial.
É de opinião que Angola chegou ao Mundial por conta da experiência transmitida?
Não estou a dizer que os jogadores que chegaram ao Mundial foram por nossa causa. Porém, houve um certo trabalho que permitiu lá chegar. Como disse, repito, a nossa transição no futebol em Angola foi uma questão de colher experiência. Ao chegarmos à Selecção Nacional, foi mesmo para recolher as experiências dos outros.Agora não admito que falem em ganhar conhecimentos ou experiência, porque a experiência já foi dada por nós. Dizia eu que encontramos potências muito fortes em África, no caso os Camarões, a Nigéria, o Gabão, a própria Costa do Marfim (actual Côte d’Ivoire), inclusive a Zâmbia. Encontramos muitos poderosos no futebol. E naquela altura estávamos sempre inseridos numa zona muito difícil. Apanhávamos sempre os Camarões, que sempre foram o calcanhar de Aquiles das nossas selecções, por isso dificilmente ganhávamos.Sempre apanhávamos os dois Congos, o actual Congo Democrático e o Congo-Brazzaville.
Apesar do poderio dessas selecções, nunca tiveram as vossas “vítimas”?
Também tínhamos. Mesmo com as experiências que procurávamos adquirir, também tínhamos as nossas “vítimas”, tais como a Selecção do Gabão, que nunca nos conseguiu vencer. Lembro-me das goleadas que infligíamos ao Gabão. Goleámos o Gabão no Estádio da Cidadela, em Luanda. Tal como éramos “vítimas” de algumas selecções, como os Camarões, a Nigéria e outras. Mas o nosso calcanhar de Aquiles, ou maior preocupação, era mesmo jogar contra os Camarões. Também fizemos um grande jogo com a Argélia, onde infelizmente não joguei porque vinha de uma lesão, fui substituído pelo Makuéria, que fez um grande jogo. Marcámos o terceiro jogo que nos daria a vitória na Argélia, mas o árbitro esteve contra nós.
Será que a falta de experiência também contou nesse jogo?
Também. Uma coisa fundamental: na altura não tínhamos experiência competitiva internacional, não tínhamos grande experiência a nível da Confederação Africana de Futebol (CAF), então, também, fomos ganhando experiência com as equipas de arbitragem, as organizações da CAF, através dos organizadores do futebol africano. Isso tudo nos foi penalizando.Quer os jogadores, quer os dirigentes, não tinham domínio dos meandros das competições africanas. Assim foi.
“Estamos numa nova era”
Qual é a opinião que tem da nova era?
De facto, estamos numa nova era. Os nossos dirigentes já estão mais enquadrados com isso. Podem não estar completamente, mas hoje as coisas já estão modernizadas. Os nossos jogadores, equipas técnicas e dirigentes já têm os órgãos de comunicação social todos presentes, já têm o sistema informático que nós não tínhamos antigamente.Já têm os equipamentos desportivos que nós não tínhamos.
É possível exemplificar?
Quando nós jogávamos fazíamo-lo por amor à camisola, porque tínhamos vontade de jogar, tínhamos o coração ligado à nossa pátria, ao nosso país e aos nossos dirigentes. Eu era capitão da Selecção Nacional e naquela altura usei, muitas vezes,pano para fazer o braçal de capitão. Usávamos ligaduras cravadas com fitas adesivas, para simbolizar que era capitão. Ou melhor, para diferenciar dos outros jogadores. Veja o que nós passámos e a realidade que hoje é diferente! Hoje você está sentado no sofá em casa, no gabinete ou na Federação com meios informáticos, recolhendo todos os dados.
No passado também fazia-se scouting ou é uma nova moda?
Antigamente não se fazia scouting como acontece actualmente. Antigamente não se tinha dirigentes que passavam à frente para criar as condições. Íamos todos juntos. Dormíamos e comíamos todos mal, quer cá, quer fora. Passávamos por vicissitudes que um atleta de alta competição não deve passar.Digo atleta, defendendo o futebol, mas a mesma realidade deve ser extensiva ao basquetebol, andebol, ténis, xadrez e outras modalidades, na fase inicial, que transitaram da fase colonial para o pós-Independência. Também tiveram muitas dificuldades para desenvolverem a actividade desportiva nos clubes ou selecções. Hoje não se admite, e eu não posso entender que algumas vezes isso aconteça, que os jogadores vão a uma missão e passem mal, não consigam viajar em condições, não comam bem algumas vezes, não durmam bem e viajem com algumas vicissitudes, porque actualmente já se podem criar equipas de avanço, para criarem as melhores condições para os clubes ou selecções.
É o que nota actualmente?
Enquanto delegado dos Desportos chefiei uma delegação para Paris, França. Eu próprio é que fui criar as condições, embora houvesse já contactos, por intermédio de telefonemas. Fui lá criar as condições e representei bem, o que culminou com um bom estágio da Selecção Nacional e tivemos uma representação condigna. Hoje, as vicissitudes não deviam acontecer. Hoje há equipas de avanço e quando a equipa chega encontra tudo preparado, tudo bonito. De qualquer das formas, é para dizer que o tempo é diferente. Hoje já há melhores elementos para proporcionar um trabalho mais aturado, constante e significativo para que os jogadores possam representar, condignamente, o nosso país.
Existe outro reparo a fazer?
Penso que os jogadores de hoje valem-se muito dos valores monetários que recebem. Isso é muito mau, embora seja reconhecido que devem ter o direito a serem remunerados por aquilo que fazem, mas tem de haver, também, o lado do coração a puxar pelo país.
No passado era possível negar representar a Selecção Nacional, em detrimento do clube?
No tempo em que jogávamos pela Selecção Nacional e pelos nossos clubes, não aparecia um jogador que rejeitasse a sua convocatória para representar a Selecção Nacional. Aliás, era difícil aparecer um jogador que rejeitasse a sua presença na Selecção Nacional. Não aparecia. Hoje já aparecem muitos. Há quem rejeite com naturalidade a presença nos Palancas Negras. Ou os clubes de fora também já proíbem que os jogadores venham. Às vezes, os seleccionadores não convocam aqueles que deviam. Reconhecemos que isso é um problema técnico e não nosso. Mas, antigamente, todos queriam jogar pela Selecção Nacional. Por isso, aí está o nosso reconhecimento. Estamos mal financeiramente, mas somos ricos por termos representado, condignamente, o nosso país.
Os novos jogadores convocados eram sempre bem tratados?
Sem dúvidas. Mas havia aqueles gozos, brincadeiras nossas, como, por exemplo, “vieste fazer o quê aqui?”. Na defesa não tinhas hipóteses, porque estava o Lourenço, o Garcia, o Santo António, o Salviano, o Chico Afonso, tal como no ataque, com a presença do Ndungidi, e outros, a par do meio campo. Tinha que se lutar muito para entrar, porque a equipa já estava escolhida. Tínhamos aquelas brincadeiras, mas alguns ficavam e outros iam. Devo dizer que saíam das convocatórias muitos bons jogadores, importantes. Era querer jogar na Selecção Nacional, como forma de representar condignamente o país, por amor à camisola. É o que nós fizemos. Eu disse antes que estamos ricos em termos desportivos, ganhamos muito. Eu, por exemplo, modéstia à parte, estou feliz, porque vocês hoje fazem entrevistas e dizem que eu fui um bom jogador, exemplar. Como eu houve muitos jogadores bons. Não posso estar isolado dos outros, mas, para dizer que, resumidamente, todos nós queríamos ser da Selecção porque jogávamos por amor à camisola.
Há antigos jogadores a passarem mal
O futebol sempre deu dinheiro?
Não jogávamos por causa do dinheiro. O patriotismo falava mais alto. Você já viu ir para os Camarões e ir jogar com 50 dólares, às vezes nem era por dia? Às vezes davam os 50 ou 100 dólares para os dias que ficássemos lá. Hoje não querem viajar, alegando que a Selecção paga mal. Mas, nós não. Pagando bem ou mal, era ir.A maior virtude de representar o nosso país é estar na Selecção Nacional. Não quero só falar do futebol. Quero, também, falar de outras modalidades, porque eu vi e acompanhei as outras modalidades.
Quem foram os seus treinadores, ao longo da carreira desportiva?
A nível de clubes lembro-me do Salvador do Carmo, Rogério Peyroteu, Amílcar Silva, Edelfride Palhares da Costa “Miau”, Alexandre Baptista, Du Filho, Dr. Eduardo dos Santos, Ferreira Pinto, Kasanini (jugoslavo), Ventcho Zaharei (búlgaro), Augusto Martins (português), Nicola, João Machado, Rui Rodrigues (português). Já a nível da Selecção Nacional trabalhei com Chico Ventura, Cata, Domingos Inguila, Pattar Knezevick (jugoslavo), Amílcar Silva, Joca Santinho, Rúben Garcia, Storick e Videk (jugoslavo).
Mas notamos que é proprietário de um Lexus!
Felizmente, um dos ministros com quem eu trabalhei, reconhecendo a minha participação na organização de vários eventos em Angola, particularmente em Benguela, como foram os casos do Afrobasket, CAN de Andebol e de Futebol, recompensou-me com o meio que vocês viram. Este carro já está comigo desde 2011. Estamos em 2024. Tive muitas promessas de alguns governadores que passaram por Benguela e ninguém me deu nada. Não estou a chorar por isso e nem quero ser pedinte. Lido bem com aquilo que tenho.
Mas há quem possa pensar que foram maus gestores financeiros!
Ninguém nos pode chamar de maus gestores financeiros, porque não ganhamos para isso. Agora é que não admito que haja quem esteja a jogar neste momento, que ganha bem, dá um pontapé na bola, ganha muito dinheiro e não saiba fazer a gestão desse dinheiro. Aí podemos responsabilizar, porque ganharam alguma coisa.
Carrega boas recordações das figuras com quem trabalhou?
Todas essas personalidades transmitiram-me ensinamentos e experiências diversas, bem como lições de vida que marcaram a minha existência e contribuíram para nortear a minha conduta, não só como desportista, mas como chefe de família e membro activo da sociedade angolana e, principalmente, dirigente desportivo.
Qual é a avaliação que faz relativamente à atenção que se dá ao desportista?
Vejo que o país está, agora, a tentar lutar com as organizações desportivas no sentido dos jogadores terem uma reforma desportiva. Temos muitos antigos jogadores que hoje andam de mão estendida, a pedir. Não tenho coragem de fazer isso. Mas vejo muitos colegas que, lamentavelmente, estão a passar muito mal. E aí, agradeço à Comunicação Social, quer a imprensa escrita, quer a rádio, toda a gente que faz desporto na Comunicação Social, que tem estado a alertar as pessoas para a situação de antigos jogadores que estão a passar mal. Quero exemplificar o caso da Voz dos Kotas, que tem estado a falar, inclusive, daqueles que praticaram outras modalidades. São vocês que estão a alertar a sociedade no sentido de abrir os olhos para dar boas condições de trabalho aos actuais jogadores e pensar naquela velha guarda, alguns com mais de 70 anos.
Qual é a sua realidade?
No meu caso tenho 70 anos. Mas, há elementos que são mais velhos que eu, andam por aí, e outros que já partiram para outra dimensão por causa das dificuldades. Os vivos não conseguem sustentar os seus filhos, as suas mulheres e suas famílias. Quando alguém que antes jogou futebol não consegue sustentar a sua família, isso mata essa pessoa.
Acha que há muitas lamentações?
Uma pessoa que está reformada, alguns deles nunca trabalharam, dependiam directamente do futebol ou do desporto, e hoje para dar um pão a uma criança tem que pedir a um amigo, é difícil. São dessas coisas que às vezes falamos e algumas pessoas não compreendem. A Comunicação Social tem feito esse trabalho para chamar atenção. Muitos andam a pedir ajuda aos vizinhos e as pessoas interrogam-se: “Então andaram a fazer o quê no futebol?”. Não compreendem que nós andamos a jogar por amor à camisola e à Pátria. São dessas coisas que às vezes ficamos a lamentar e alguns não compreendem.
Existem exemplos?
Em 1976, quando fomos ao 1º de Agosto, que era uma selecção militar, fomos considerados também como militares e eu nem sabia quanto é que ganhava. E éramos obrigados a jogar. Naquela altura havia conflito armado no nosso país e os nossos responsáveis diziam que no sítio tal há guerra e vocês também estão na guerra e na luta. O vosso material de luta é a bola e têm que combater conforme combatem os nossos soldados naquele lado. Essa era a linguagem antiga. Éramos tropas e tínhamos que aceitar.
Teve algumas dificuldades nisso?
Sim. Vivia em Benguela e fui obrigado a ir a Luanda. Não consegui encontrar residência para mim. Casei-me em 1976 e em 1977 já tinha uma filha. Não me deram casa. Tive que lutar para em 1980 sair. Felizmente fiz bem. Perdi porque não joguei muito tempo no 1º de Agosto. Só joguei durante três anos. Mas fiz bem em regressar, porque me juntei à minha família. Estava a correr o risco de perder a mulher. Comecei a trabalhar. Com o pouco que ganhei consegui manter a minha família num estado equilibrado. Hoje vivo equilibrado e não tenho problema nenhum de vida. Tenho a minha reforma garantida, embora agora não seja grande coisa, mas dá para lidar com a minha família em casa.
Nunca enveredou pelo mundo de treinador e do dirigismo desportivo?
Frequentei um seminário para treinadores de futebol, em 1983, em Benguela. Neste mesmo ano, assumi a responsabilidade de treinar a equipa do Nacional de Benguela, ainda como jogador. Em 1987 frequentei, igualmente, o curso de treinador de futebol na Escola Superior de Educação Física e Desportos (DHFK), em Leipzig, na República Democrática Alemã.
Em que ano iniciou a carreira efectiva de treinador?
Iniciei a carreira efectiva de treinador em 1988 e treinei a equipa do Sporting de Benguela e, posteriormente, os Gaiatos de Benguela, na I Divisão Nacional.
Interrompi a actividade de treinador em 1990 e passei a desempenhar as funções de delegado provincial do Ministério da Juventude e Desportos em Benguela, cargo que desempenhei com zelo e dedicação durante dois anos (24 meses). Durante a minha vigência participei em vários fóruns e acções de formação.Repito, fomos nós que levamos o país à mais alta-roda do desporto.
Quero agradecer a oportunidade que o Jornal de Angola me concede para falar da minha trajectória, porque temos poucos escritos sobre a nossa história. Hoje, as coisas são diferentes. Por exemplo, já é possível abrir o Google e ver a trajectória, por exemplo, do Gelson Dala. No nosso tempo não havia isso. Então, há muita gente que não sabe de nós. Quem sabe da geração passada são os mais velhos, que andaram connosco, foram nossos amigos. Eles sabem como é que nós jogamos e o que fizemos. Infelizmente, muitos já morreram e a história desaparece. Precisamos que falem de nós agora e sejamos homenageados também agora, porque o morto não vê e não sabe.
O que deve ser feito para reconhecer as antigas glórias?
A nível de todas as províncias ainda há pessoas que praticaram diversas modalidades. Acho que os governos provinciais deviam homenagear, ainda que pouco a pouco, as antigas glórias, por ocasião de dias ligados à actividade desportiva angolana. E com maior avalanche fazer homenagens a nível nacional, conforme foi feito, por exemplo, no ano passado, com os 100 mais destacados no futebol em Angola. Acho que é a Associação Sagrada Esperança que fez esse trabalho. Todo o mundo acompanhou e os convidados foram ver. Isso é que é uma homenagem coerente e honesta.Fui contemplado e muitos ficaram a saber que fui um dos melhores defesas do país. Em cada ano eleger os melhores desportistas. Não custa nada.
Qual é o sentimento depois de ter sido homenageado?
Eu, por exemplo, quando fui homenageado entre esses 100 melhores desportistas, fiquei satisfeito. Não deram dinheiro a ninguém, mas fiquei satisfeito. Saí radiante e cheio de alegria porque não sabia que estava incluído no meio dos melhores desportistas daquele tempo. Eu não sabia. Foi uma surpresa, assim como para outros. Os que estavam presentes e os que acompanharam pela Comunicação Social também não sabiam. Agora é preciso preparar os outros. Não podem ser sempre os mesmos.Eu não gosto muito de falar de mim, mas estão a fazer uma entrevista a mim.
A entrevista é personalizada…
Comecei a ser delegado dos Desportos em 1990. Mas em 1970 já trabalhava para o desporto. Comecei a trabalhar com Paulo Jorge. Falando de mim, acho que fiz alguma coisa merecedora para o Governo Provincial homenagear esta pessoa, tal como outras. Ainda ninguém pensou nisso. A Federação Angolana de Futebol, também, numa das passagens fez-me uma homenagem. A Associação Provincial de Futebol de Benguela fez-me um reconhecimento ao atribuir o meu nome ao Campeonato Provincial. Fiquei satisfeito. Mas, a nível do Governo estou à espera. Até custa fazer essas contas. É melhor fazermos bem as contas de 1990 até 2015. Todos os governadores que passaram por mim ninguém me conseguiu dar uma prenda ou oferta, devido ao trabalho feito. Estou à espera. Não estou a defender a minha dama. Hoje somos independentes e é preciso que se diga isso alto e em bom som: vocês têm que registar bem o que estou a dizer, para não dizerem que só estou a defender o futebol. Estou a defender o desporto nacional. Nós fomos os co-fundadores do Desporto Nacional e devemos ser reconhecidos por isso.
Foi sempre bem reconhecido nas vestes de capitão da Selecção Nacional?
Felizmente fui. Todos os meus colegas foram sempre unânimes em dizer que eu fosse capitão da equipa. E eu agradeço a todos. Quando fui capitão da Selecção Nacional, depois no 1º de Maio, só fiz um jogo sem ser capitão, os próprios jogadores reuniram-se e indicaram que tinha que ser eu o capitão, devido à braçadeira que sempre ostentei na Selecção de Angola. É uma gratidão muito grande que tenho.
Sente-se reconhecido pela Federação Angolana de Futebol, por tudo o que fez?
Eu fui convidado a ver o último jogo de apuramento ao CAN no Lubango (Huíla) e foram indicados muitos jogadores para assistir esse jogo. Como eu era o antigo capitão da Selecção Nacional, fui capitanear os antigos jogadores, também, no Lubango. Foi uma coisa muito bem reconhecida e todos aceitaram que eu fizesse isso.
O que aconteceu no Lubango?
Todos os jogadores que foram chamados para assistir ao jogo no Lubango, dependeram da minha organização e autorização. Deram-nos um autocarro que apoiou os antigos jogadores. Toda responsabilidade foi dada a mim, inclusive o alojamento e alimentação. Eu coordenei e todos aceitaram. Não fui só o capitão dos antigos jogadores da minha linhagem, mas, sim, de todos que jogaram na Selecção e são mais velhos que eu. Também estiveram no nosso grupo e não me senti vaidoso, por exemplo, o José Luís Prata, meu grande amigo e um grande senhor do desporto e do futebol, em particular. Ele esteve na nossa caravana dirigida por mim e ele aceitou e fiquei muito satisfeito por estar a capitanear uma pessoa mais velha que eu e que foi do tempo em que eu ainda não jogava.
Existem outras figuras?
Outra figura foi o senhor Dionísio de Almeida, que foi, também, enquadrado no nosso grupo de jogadores, assim como o Mário Fernandes, da arbitragem. São pessoas mais velhas que eu, respeitadas e educadas, que andaram sempre connosco. Gostei muito desse grupo todo e não tive problema nenhum. Pena é que foi por pouco tempo.
Mas devo dizer que desde que fui capitão da Selecção e delegado dos Desportos, até este momento, sinto-me satisfeito porque não consegui arranjar nenhum inimigo. Não tenho inimigos no desporto, tão pouco no futebol. Sempre que passo na rua há três nomes que me chamam.
Quais são?
Director, Capitão e outros chamam-me Mais-Velho. Ainda hoje jogo bola e treino todos os dias. Então, é um exemplo. Ainda sou capitão da nossa velha guarda de Benguela. Esse é o carinho que me dão. Eu vou a Luanda e os meus antigos colegas, todos que jogaram comigo e outros que jogaram depois de mim, chamam-me Capitão. Fico radiante, porque sou reconhecido como tal. Essa é a vida que tive durante os meus longos anos desportivos, quer como jogador, quer como dirigente desportivo. Sinto-me satisfeito. Acho que vou morrer satisfeito. Tenho dito no meio da brincadeira e é possível que seja assim, eu preferia morrer no campo de futebol ou a treinar, do que de outra forma. Digo isso sempre. Gostaria de morrer ligado ao desporto.
“Não admito competirmos hoje para ganhar experiência”
Nas vestes de “eterno” Capitão, qual é a avaliação que faz do desporto angolano actualmente? A Selecção Nacional foi apenas uma vez no Mundial 2006 e nunca ganhamos um CAN…
Claro que sim. Na passagem em que eu falei da nossa geração, que fomos ganhar experiência, disse, também, que não admitia que hoje estivéssemos ainda à procura de experiência competitiva internacional. Não admito isso.
Uma das coisas que lhe garanto é o facto de que hoje o desporto é dinheiro, não só em Angola. Em qualquer parte do mundo, hoje vai-se onde dão mais. Não é por amor à camisola. Então, as pessoas estão a jogar à procura só do dinheiro. Mas, também, devo dizer que cada um tem a sua geração.
Qual é a caracterização que faz da sua geração?
A nossa geração era outra e a actual é, igualmente, outra. Porém, a geração actual tem melhores condições que a nossa. Quando jogamos futebol tínhamos poucos campos relvados, havia os Coqueiros, um pouco o Ferrovia e o Sporting do Huambo e depois na Huíla. O resto ninguém tinha campo relvado. Relvaram os campos agora, por causa do CAN que houve. Nós jogávamos no pelado, com muitos riscos. As bolas saltitavam. Raspávamos sempre as pernas quando caíssemos. Éramos mal equipados e vestidos.
Qual é o reparo que faz actualmente?
Hoje as Selecções vão bem vestidas. Vão de fato. Cada dia têm outro traje e nós não tínhamos isso. Andávamos cada um com a sua roupa. Não havia coisas unificadas, diferente do que vivemos no Mundial de 2006. Há outras condições que nós não tínhamos naquela altura. Actualmente, já se melhorou a condição financeira. Nós sempre pioramos. Hoje já se come bem. Naquele tempo comíamos mal. A nossa linguagem era arroz com peixe frito ou peixe frito com arroz, porque era o que nós utilizávamos. Depois dos treinos nem comida tínhamos. Alguns de nós bebíamos um a dois finos. Dormíamos mal. Já chegamos a dormir em aeroportos ou casas impróprias. Hoje não acontece, por isso não posso perceber e nem admitir o que hoje acontece. É preciso que os nossos dirigentes saibam que o desporto faz bem à governação. O desporto é componente necessária para um dirigente governar bem o país. Não se pode colocar o desporto de lado. Ele é saúde, é cultura, é turismo e muito mais.O desporto dá nome ao país.
Alguma coisa lhe entristece?
Num dia desses ouvi um dirigente do Huambo, que já foi uma província de elevada categoria no desenvolvimento desportivo e hoje está sem quase nada na área desportiva. Ouvi falar nisso e entristeceu-me. Entristece-me ouvir que o Sporting de Cabinda não conseguiu ficar na I Divisão. Se nas 18 províncias tivéssemos um representante no Campeonato Nacional, inclusive nas outras modalidades, o país ficava rico em termos desportivos.
É preciso haver honestidade?
No passado havia muitos dirigentes e trabalhadores honestos, como exemplo cito o Licas, senhor Nicolau. Eram pessoas engajadas. Têm que pôr esses nomes na minha entrevista. O Licas andava com os jogadores e os treinadores. Estou a falar dos primeiros dirigentes da Federação Angolana de Futebol, que ficava na baixa de Luanda, mesmo sem condições de trabalho, mas deram muito pelo futebol, mesmo andando a pé. Como disse, as pessoas morreram pobres e outras acabaram mal, porque não há apoio. Não compreendo e não aceito. Os nossos dirigentes têm que trabalhar para que o Orçamento Geral do Estado contemple bem a actividade desportiva no país e pedir contas, porque às vezes o Governo tem razão. As pessoas gostam de receber e não gostam de prestar contas.É preciso apresentar contas. As pessoas têm medo de apresentar contas porque fazem alguns desvios. É bom receber, mas, também, é preciso prestar contas. Não se pode escamotear as contas.
PERFIL
Nome – Pedro Garcia
Filiação – Armando Duarte Garcia e de Maria Varela
Data de nascimento – 09/09/1953
Naturalidade – Bairro do Cotel, cidade de Benguela
Estado civil – Casado com a senhora antiga capitã da Selecção Nacional de Andebol Maria José dos Santos Garcia
Filhos – Quatro (uma menina e três rapazes)
Melhores cidades de Angola – Benguela e Lubango (Huíla)
Melhor cidade no exterior – Lisboa
Clube do coração
Portugal de Benguela, primeiro, que originou depois o Nacional de Benguela. Esse é que é o meu verdadeiro clube do coração. Foi aí onde aprendi futebol
Início da carreira desportiva
Em 1968, com nove anos. Terminei a carreira de jogadorde futebol em 1987
Memória de alguns golos que marcou
Não muitos, mas marquei alguns. E curiosamente tinha uma altura que me facilitava bastante cabecear para a baliza. Não posso precisar agora, para não mentir, o número de golos que marquei, mas foi um bom número, quer em clubes, quer na Selecção Nacional
Clubes que lhe deram muito trabalho ao longo da carreira
Sou dos dois tempos: colonial e pós-Independência. No tempo colonial, os jogadores que mais trabalho me deram foram Carlos Alves, Arlindo Leitão, o Neto, o Dudu… São os jogadores que me deram muito trabalho. Havia outros. Mas tinha muitas dificuldades com estes jogadores. Como referências, no tempo colonial, essas pessoas deram que falar.Depois da Independência eram poucos, porque muitos eram meus colegas, com excepção do Jesus, o Afonso, o Chinguito e o Abel, que me deram muito trabalho.
Como ocupa os tempos livres?
Muito fácil. Eu levanto-me todos os dias às 4h30 da manhã. Às 5h00 estou na rua a correr e faço os meus exercícios físicos. Faço entre seis e nove quilómetros por dia, com excepção das terças e quintas-feiras e sábados, dias em que vou treinar no Nacional com a minha equipa. Quando tenho jogo não vou treinar na rua.
Tem casa própria?:
Esta casa onde estamos a fazer essa entrevista é minha
Carro próprio
Felizmente tenho um, mas já está na recta final. Tenho o que me foi dado pelo antigo ministro da Juventude e Desportos Gonçalves Muandumba
Qual é o apoio que gostaria de receber do Governo
Tudo que fosse possível e o reconhecimento do que eu fiz. Eu receberia de bom grado
Algo a acrescentar
O Jornal de Angola fez bem em entrevistar-me, porque consegui abrir a minha alma para dizer algumas coisas sobre a minha trajectória que estão escamoteadas, escuras e muito fechadas. Acho que esta entrevista abrirá os olhos de muita gente, quer do Governo, quer da sociedade civil. Repito que não fiz esta entrevista para fazer passar uma imagem
JA